11 de fevereiro de 2011

Texto sobre o Acordo Ortográfico

Não sou absolutamente nada a favor do novo acordo ortográfico, por razões já manifestadas. A verdade é que já está assinado, e duvido que, por muitas petições assinadas e outras formas de protesto, o acordo fique anulado.

De todo o modo, deixo aqui um texto de Manuel Halpern, extremamente bem escrito, onde também ele manifesta o seu desagrado.


"Um cê a mais", Manuel Halpern

"Quando eu escrevo a palavra ação, por magia ou pirraça, o computador retira automaticamente o c na pretensão de me ensinar a nova grafia. De forma que, aos poucos, sem precisar de ajuda, eu próprio vou tirando as consoantes que, ao que parece, estavam a mais na língua portuguesa. Custa-me despedir-me daquelas letras que tanto fizeram por mim. São muitos anos de convívio. Lembro-me da forma discreta e silenciosa como todos estes cês e pês me acompanharam em tantos textos e livros desde a infância. Na primária, por vezes gritavam ofendidos na caneta vermelha da professora: não te esqueças de mim! Com o tempo, fui-me habituando à sua existência muda, como quem diz, sei que não falas, mas ainda bem que estás aí. E agora as palavras já nem parecem as mesmas. O que é ser proativo? Custa-me admitir que, de um dia para o outro, passei a trabalhar numa redação, que há espetadores nos espetáculos e alguns também nos frangos, que os atores atuam e que, ao segundo ato, eu ato os meus sapatos.

Depois há os intrusos, sobretudo o erre, que tornou algumas palavras arrevesadas e arranhadas, como neorrealismo ou autorretrato. Caíram hifenes e entraram erres que andavam errantes. É uma união de facto, para não errar tenho a obrigação de os acolher como se fossem família. Em 'há de' há um divórcio, não vale a pena criar uma linha entre eles, porque já não se entendem. Em veem e leem, por uma questão de fraternidade, os és passaram a ser gémeos, nenhum usa chapéu. E os meses perderam importância e dignidade, não havia motivo para terem privilégios, janeiro, fevereiro, março são tão importantes como peixe, flor, avião. Não sei se estou a ser suscetível, mas sem p algumas palavras são uma autêntica deceção, mas por outro lado é ótimo que já não tenham.

As palavras transformam-nos. Como um menino que muda de escola, sei que vou ter saudades, mas é tempo de crescer e encontrar novos amigos. Sei que tudo vai correr bem, espero que a ausência do cê não me faça perder a direção, nem me fracione, nem quero tropeçar em algum objeto abjeto. Porque, verdade seja dita, hoje em dia, não se pode ser atual nem atuante com um cê a atrapalhar."

3 comentários:

Citizen Pete disse...

O texto do Halpern um pouco acima de um sentimentalismo de esperar com conta, peso e medida... partilho umas ideias. Do A.O. há pontos com os quais concordo, outros que não, como a maioria do luso-falante.

Creio que um idioma tem de evoluir paralelamente à mentalidade do povo que o fala e escreve: eu acredito que temos de ser práticos. Se não digo o "c", por que motivo hei-de escrevê-lo? Assim, ser proativo é ser prático: e - por exemplo - continuarei a diferenciar (leia-se, falar) "facto" de "fato". Faz todo o sentido porque pelo menos deste lado do 'charco' usamos esse "c".

No entanto, aquele "p" que surge em palavras como "óptimo" é uma teia de aranha secular no templo do Latim (idioma que não deve morrer mas que é limitado às Humanidades). Não faz parte do português moderno falado, meramente do escrito. É uma negação do discurso e uma oposição mal justificada à mudança. Aliás, se por vezes já comemos sílabas na fala, então ainda por cima vamos escrever uma letra ali atirada no meio da palavra e que ninguém, absolutamente ninguém (pelo menos nunca ouvi dizer "ó-p'ti-mo") vai usar?

Claro que tudo é relativo e às vezes vacilo perante a minha opinião nalgumas coisas. Exemplo: parece que existe a possibilidade (quer dizer, julgo eu) de se cortar o "h" mudo? É realmente estranho ("ser umano"??). Todavia, não sei se isto se manteve caso seja verdade.

No fundo, há que analisar na prática este tipo de coisas. Abraçar a mudança, quando concluímos que nos faz bem.

O Halpern pode muito bem continuar a usar o seu querido "c" - ele já não está na escola e não tem de se preocupar com as notas. Alías, preocupe-se mais com outros problemas, como cultivar nas gerações mais novas conceitos de "cidadania", "carácter", "individualidade", "altruísmo", etc., e - por que não? - a caligrafia. A menosprezada, pisada caligrafia.

Sabes Ana, tenho o diário da incursão lusa na Primeira Grande Guerra, relato do meu tio-bisavô, e embora o homem não fosse muito instruído, tinha uma caligrafia belíssima e exemplar... e acrescento, personalizada e com um discurso escrito que transmite de certa forma o modo como provavelmente falaria. Este tipo de tradição morreu (ou assim o vejo) para a maioria, e ninguém faz nada, ou muito, que eu saiba. E revolta-me mais do que o mero "c" do Halpern. Um dia também removeram o "ph" (desconheço os motivos) para usar o "f". Deve ter havido gente a torcer o nariz!

Em suma, ainda não li o acordo na íntegra (já agora, tens um link?) mas farei as minhas próprias adaptações baseadas nos dois lados: se me disserem que está oficialmente errado, poderei sempre responder que "optei por ser prático apesar de não cumprir com as regras atuais". E em jeito de rebeldia: sou português e não assinei acordo nenhum, nem dei o meu parecer democrático (via referendo ou similar) perante o futuro do meu próprio idioma, do qual me orgulho. Então será o que eu quiser, de acordo com a minha lógica (admito que poderão apontá-la como "a-da-batata"), ponto.

E sou a favor de inglesismos, francesismos, desse tipo de (a ver se a expressão me sai minimamente clara) "abraços poliglotas"; porque tão-pouco creio que sejam essas coisas que me irão embrutecer o dom da palavra.

Enfim, bom textinho e um assunto sempre quente e interessante, hein, Ana?
Vou escrever-te em privado para combinarmos o tal café!

Feather disse...

Uma coisa é certa. Já vi aí muita coisa escrita com o acordo, mas só dei conta que já estava ao abrigo quando apareceram as palavras sacrificadas. De outra forma, o estilo de escrita continuava a ser português.

Há casos que, de facto, estar lá a letra ou não, é bastante indiferente, mas no caso do Humano, tem a ver com a Humanidade e a palavra "Homem". E, ao que sei, essa palavra não foi alterada.

Quanto ao link, acho que já tive. Vou procurar e depois envio-te. Vou também procurar um outro texto muito giro que recebi sobre o acordo.

Até já

Marta BO disse...

Citando um amigo meu: "Se agora é "Egito", porque é que os seus habitantes não são os "egícios"?"